- INTRODUÇÃO
O inimigo penal tem sido uma figura definida e perseguida de forma recorrente pela doutrina punitivista da virada do século passado. Com a superação da Guerra Fria, os Estados Unidos passaram a adotar uma postura intervencionista que muito se assemelha ao autoritarismo que precedeu à Segunda Guerra. Seu discurso penal desde 1980 é simples, na medida em que promete mais penas para promover mais segurança, afirmando que os delinquentes não merecem qualquer garantia, pois são apenas parte de uma criminalidade suja que viola os direitos humanos (ZAFFARONI, 2007).
Trata-se do embrião do chamado Direito Penal do Inimigo, assim definido pelo jurista alemão Günther Jakobs, que cuida de “proteger” e separar os cidadãos comuns daqueles com desvios de conduta irrecuperáveis, através de uma relativização do processo penal. Este artigo se debruça sobre a formação do inimigo penal e seu papel na história e na formação das relações de poder.
Para tanto, este artigo se valeu da abordagem qualitativa, na medida em que a pesquisa é realizada de forma mais amplas, valorizando conceitos e contextos, sem se ater a representatividade numérica do assunto (MEZZAROBA; MONTEIRO, 2019), mas sim ao desenvolvimento social de uma consciência coletiva acerca do conceito de inimigo e do tratamento dispensado a ele. As informações foram reunidas de forma indireta, valendo-se do modelo de pesquisa bibliográfica, através de consultas a materiais já produzidos e publicados. A aplicação de tais modelos se deu com apoio em doutrinas, artigos de revistas jurídicas eletrônicas, legislação nacional afeta ao tema e no trabalho de juristas dedicados ao Direito Penal, com destaque para Raúl Zaffaroni e Günther Jakobs.
- O INIMIGO PENAL
Segundo Moraes (2006), o “inimigo” é pensado como aquele que comete crimes econômicos, terroristas, membros de quadrilhas, estupradores ou qualquer outro considerado perigoso e que se afastaram do Direito ao ponto de não se ter mais garantias de que poderão seguir as leis. Porém, o Inimigo no Direito Penal é uma figura delicada, na medida em que a evolução social (ou ausência dela) pode transformar qualquer um no “inimigo. ” Aceitar a diferenciação do inimigo para que ele seja reconhecido por tal característica, mesmo de forma cuidadosa, é uma questão que gera o risco do extremismo ou ainda a certeza de que o cuidado empregado no tratamento da questão não durará para sempre, especialmente em um período em que se dissemina pelo mundo discursos radicais acerca de lei e ordem (ZAFFARONI, 2007).
A palavra “inimigo”, conforme conceituação do dicionário, é “ 1. Hostil, adverso, contrário. 2. De grupo, facção ou partido oposto. 3. Nocivo. sm. 4. Aquele que odeia ou detesta alguém ou algo. 5.
Grupo, facção ou partido hostil. 6. Coisa nociva. ” (FERREIRA, 2001, p. 420). Para a literatura, desde os escritos mais simples até os mais elaborados, o inimigo é o responsável pelos conflitos que tumultuam a vida do herói (PASSOS, online). Para a religião, inimigo é comumente um nome para o Diabo, o antagonista natural que “anda ao redor como o leão que ruge, buscando a quem possa devorar” (A BÍBLIA, 2003, p. 1546). De toda sorte, representa algo a ser afastado, algo predisposto a praticar o mal.
Juridicamente, o conceito de inimigo teve origem no direito romano, que definia como inimigo o estrangeiro, e não qualquer sujeito infrator (ZAFFARONI, 2007). Os romanos possuíam duas categorias de inimigos: o hostis alienígena e o hostis judicatus. O primeiro era o estrangeiro, e o segundo era aquele declarado inimigo pelo poder do Estado em uma situação excepcional, quando o indivíduo ameaçava a segurança por meio de conspirações e traições, tornando-se um inimigo público (AGAMBEN, 2004 apud ZAFFARONI, 2007). Eram declarados inimigos não por manifestarem suas intenções, mas porque o poder os declarava como tal (ZAFFARONI, 2007).
Na Idade Média, o inimigo assumiu caráter religioso. Muito embora o inimigo formal fosse o Diabo, este contava com a cumplicidade dos humanos para fazer o mal. Estes humanos, convenientemente, eram grupos selecionados e considerados inferiores, tidos como de pouca aptidão moral e intelectual e, portanto, mais propensos a pactuarem com o Diabo: as mulheres (ZAFFARONI, 2007). No período colonial, o inimigo foi identificado na a falta de civilidade das nações colonizadas. Para combatê-lo, o poder punitivo empreendeu genocídios, massacrou populações americanas e reduziu os sobreviventes à condição de servos, posteriormente agrupados com os escravos africanos, dizimando culturas pré-coloniais (SYROGIANNIS, 2015).
O combate ao inimigo no Colonialismo nada mais era que uma política de expansão preconceituosa que considerava a população das terras “descobertas” como inferiores e descartáveis. Por sua superioridade e evolução, o colonizador tomou para si a missão de eliminar da terra as religiões e costumes nativos que iam de encontro às suas próprias crenças.
Não se falava em cidadania nesse período, apenas de súditos, dentre os quais existia um pequeno número de privilegiados e classes subalternas que deveriam continuar nessa condição. Eram indesejáveis (inimigos) aqueles que desafiavam a ordem verticalizada, distintos daqueles que eram simplesmente inferiores e explorados, que só eram punidos por indisciplina (escravos). Os indesejáveis deveriam ser eliminados para conter qualquer rebeldia dos inferiores, e para existia as penas de morte (ZAFFARONI, 2007).
No século XX, com a ascensão dos regimes fascista e nazista, o inimigo assumiu caráter biológico/racista e antissemita. Os judeus-comunistas-capitalistas se converteram em responsáveis por todos os males existentes, tomando o lugar do próprio Diabo (ZAFFARONI, 2007). Leciona Zaffaroni (2007, p. 54):
Com efeito, os perigosos ou inimigos foram parasitas para os soviéticos, subumanos para os nazistas e inimigos do Estado para os fascistas, todos submetidos a um sistema Pena paralelo, composto por tribunais especiais inquisitoriais/policiais.
É uma tendência ao longo da história que a figura do inimigo seja usada para legitimar os desmandos e paixões de governantes autoritários. Se o estado de guerra é incitado em razão dos desejos do Estado, ele é repelido, mas se ele é fundamentado no combate a um risco comum, ganha o apoio público. Toda teoria dedicada a legitimar o tratamento penal diferenciado para os acusados se fundamenta na emergência, ou seja, em ameaças à própria sobrevivência da espécie humana, um estado de guerra que reduz as penas à coerção direta (ZAFFARONI, 2007).
O poder punitivo no combate ao inimigo serve aos interesses do grupo que se encontra no poder, perpetuando e legitimando sua posição. Para tanto, cria-se débeis teorias que definem parte da população (aqueles que representam uma ameaça contra os governantes) como inimigos da nação, transferindo para eles a culpa por eventuais problemas sociais, com o objetivo de fazer a sociedade acreditar que o extermínio do inimigo vai levar à prosperidade de todos (SYROGIANNIS, 2015).
Em suma, pode-se conceituar o inimigo penal como todo aquele que oferece, aos olhos dos detentores do poder e legisladores incontestes, um perigo comum à sociedade e as estruturas de poder existentes, e que por tal perigo, merecem maior repressão dos poderes estatais, culminando até mesmo em sua completa eliminação.
2.1 O INIMIGO SEGUNDO JAKOBS1
Definida a ideia histórica de “inimigo”, passamos ao conceito do alemão Günther Jakobs. Catedrático emérito de Direito Penal e Filosofia do Direito na Universidade de Bonn, Alemanha, Jakobs ganhou especial destaque ao discorrer sobre a diferenciação processual entre acusados. A teoria do Direito Penal do Inimigo surgiu por volta de 1985, e é responsável pela ideia de que coexistem em um contexto jurídico-penal dois direitos distintos: o direito do cidadão e o direito do inimigo (MARTINS; ESTRADA, 2009).
Até meados de 1999, Jakobs se limitava a apresentar tal teoria de forma crítica, defendendo a legitimidade e a aplicação do Direito Penal do Cidadão, que garante ao indivíduo infrator o acesso a todos os direitos penais e processuais e a conservação do seu status de pessoa. Contudo, a partir de 1999, Jakobs passou a defender a aplicação do Direito Penal do Inimigo (que até então não considerava legítimo), sob a justificativa de que a diferenciação entre os dois direitos era necessária para se manter a legitimidade do Estado e a ordem jurídica (MARTINS; ESTRADA, 2009).
O Direito Penal do cidadão é Direito também no que se refere ao criminoso. Este segue sendo pessoa. Mas o Direito Penal do Inimigo é Direito em outro sentido. Certamente, o Estado tem direito a procurar segurança frente a indivíduos que reincidem persistentemente na comissão de delitos. (…) Ainda mais: os cidadãos têm direito de exigir do Estado que tome medidas adequadas, isto é, têm um direito à segurança (JAKOBS; MELIÁ, 2018, p. 28).
Do ponto de vista filosófico, a teoria se apoia no pensamento de Rousseau, que define que aquele que não segue o contrato social estabelecido entre povo e Estado deve ser mantido à margem da sociedade, não mais considerado “súdito”, e sim um inimigo. Da mesma forma, se apoia em Kant, que diz que aquele que não participa da vida comunitária é uma ameaça à paz social, não devendo ser considerado como pessoa (SANNINI NETO, 2013). Hobbes e Kant “preservavam o status de pessoa ao cidadão que praticava apenas fatos normais, no entanto despersonalizavam, respectivamente, o réu de alta traição ou aquele que constantemente ameaçava os membros do estado comunitário legal” (MARTINELLI; BEM, 2018).
A mudança de pensamento de Jakobs é contemporânea dos eventos que Zaffaroni (2007) classificou como ascensão do “autoritarismo cool”. Na virada do século XX, o mundo passou por profundas mudanças, que vão desde o avanço tecnológico até a ruptura de paradigmas em todas as áreas do conhecimento. O fenômeno da globalização pode ajudar na compreensão da mudança de pensamento de Jakobs e da transformação regressiva vivida pela política criminal, que abandonou discursos moderados em nome de uma expansão do poder punitivo (GUERRERO, 2013).
A expansão tecnológica evidenciou novas formas de delinquência, que além de facilitar a prática do crime, atentavam contra a própria estrutura do Estado. No mesmo passo, se criaram altas expectativas institucionais na população influenciada pela mídia de massa, especialmente em relação à repressão estatal (GUERRERO, 2013). O discurso popularesco (völkisch) é aceito como forma de compensar a segurança perdida com a globalização, que busca alcançar a coesão da sociedade através de uma tese autoritária de vingança (ZAFFARONI, 2007).
Nesse contexto, Jakobs defende que o Direito Penal do Cidadão seria aquele aplicado à pessoa que, a princípio, não delinque de maneira persistente, e que oferecem certa garantia de que seguirão o ordenamento jurídico no futuro. Ele definiria e sancionaria delitos cometidos acidentalmente pelos cidadãos que normalmente se submetem às leis (PRADO, 2008). O Direito Penal do Inimigo, por outro lado, serviria àqueles que não demonstram capacidade de voltar a se portar como “pessoas” (MARTINS; ESTRADA, 2009). Em outras palavras, o Direito Penal do Inimigo seria aplicado àqueles sem esperança de redenção ou reabilitação. “Quem por princípio se conduz de modo desviado não oferece garantia de um comportamento pessoal. Por isso, não pode ser tratado como cidadão, mas deve ser combatido como inimigo” (JAKOBS; MELIÁ, 2018, p. 47).
Gómez Martin o “segundo Jakobs” descreveu a teoria do Direito Penal do Inimigo nos seguintes termos: a) pressupondo o adiantamento das barreiras de proteção do Direito Penal para estágios bastante anteriores ao da lesão;
b) aceitando o fato de que o Direito Penal não deveria atuar somente voltado para o passado (punindo os fatos já cometidos), mas também para o futuro (considerando os fatos que poderiam vir a ser cometidos); c) o Direito Penal estava em uma etapa de transição, passando de uma “legislação penal” (…) a uma “legislação de combate” (…); d) concluindo que a tendência seria de uma efetiva redução ou relaxamento o das garantias processuais próprias de um “processo penal do cidadão” (GÓMEZ, p. 1008, apud BINATO JÚNIOR, 2007, p. 120).
Pode-se concluir que o conceito de inimigo para Jakobs é o de “não-pessoa”, alguém que não demonstra capacidade de voltar a respeitar as leis, a quem se pode negar certos direitos fundamentais por não ser mais digno do status de pessoa (MARTINS; ESTRADA, 2009). Nas exatas palavras de Jakobs “o Direito Penal do Cidadão é o Direito de todos, o Direito Penal do inimigo é daqueles que o constituem contra o inimigo: frente ao inimigo, é só coação física, até chegar à guerra” (JAKOBS; MELIÁ, 2018, p. 28).
Seu pensamento é fundado em dois componentes: a função da pena e o conceito de pessoa para o próprio autor. Para Jakobs, a prevenção geral positiva era a única função da pena, englobando intimidação, correção, neutralização e retribuição, com o único objetivo de estabilizar os comportamentos através da confiança na lei (GUERRERO, 2013). Para tanto, Jakobs reconhece a legitimidade de uma repressão prévia:
Portanto, o Direito Penal conhece dois polos ou tendências em suas regulações. Por um lado, o tratamento com o cidadão, esperando-se até que se exteriorize sua conduta para reagir, com o fim de confirmar a estrutura normativa da sociedade, e por outro, o tratamento com o inimigo, que é interceptado já no estado prévio, a quem se combate por sua periculosidade. (…) um exemplo do segundo tipo pode ser o tratamento dado ao cabeça (chefe) ou quem está por trás (…) de uma associação terrorista (…) Materialmente, é possível pensar que se trata de uma custódia de segurança antecipada que se denomina “pena”. (JAKOBS; MELIÁ, 2018, p. 36).
Em suma, o Estado poderia agir de duas formas diante daqueles que violam a norma e por consequência a ordem social: pode vê-los como pessoas que agiram de modo errado e aplicar uma punição para retomar a estabilidade, ou podem vê-los como alguém determinado a destruir o ordenamento jurídico (inimigo), aplicando nesses casos procedimentos de guerra, como coação, penas desproporcionais, adiantamento da punibilidade, flexibilização ou mesmo supressão das garantias penais e processuais previstas em lei. Essas seriam, em síntese, as características principais do Direito Penal do Inimigo para Jakobs (MARTINS; ESTRADA, 2009).
2.2 AS CRÍTICA À TEORIA JAKOBESIANA
Teorias servem de sustentáculo para a formação de um Estado e para interpretações do comportamento de uma sociedade. Teorizar é oferecer interpretações de uma mesma realidade, e se feito de forma correta, com um bom método científico, agrupando dados empíricos e dando a eles um tratamento lógico, pode ser uma proposta segura de interpretação (ODON, 2016). Contudo, nenhuma teoria é imune a contestações. Esse é o caminho natural do debate, da dialética e da evolução democrática das ideias.
As polêmicas conclusões de Jakobs, de forma previsível, geraram grandes debates e críticas. Na maioria delas, argumenta-se que o doutrinador defende a punição do indivíduo pelo que ele é ou aparenta ser, por ele representar um risco à sociedade, e não pelo crime que de fato ele tenha cometido, o que transforma o Direito Penal do Inimigo em um direito penal do autor, em detrimento do direito penal do fato (MARTINS; ESTRADA, 2009).
Meliá (2018), por sua vez, divide o Direito Penal do Inimigo em três faces básicas: a) o adiantamento da punibilidade, orientada pelo fato futuro e não pelo fato cometido; b) penas altas e desproporcionais; c) relativização ou supressão de determinadas garantias processuais.
Logo, recai sobre o inimigo um julgamento de periculosidade e não de culpabilidade. Analisa- se a possibilidade de o agente vir a delinquir, o futuro, o perigo que ele pode causar à sociedade e não o que foi feito (SANNINI NETO, 2013). O inimigo é privado de certos direitos e garantias, materiais e processuais, recebendo tratamento diferenciado no processo de conhecimento e no cumprimento da pena. Antes de proferida a sentença condenatória e do seu trânsito em julgado, o indivíduo já é considerado inimigo, em uma espécie de pré-julgamento Estatal (MARTINELLI, 2017).
O direito penal do inimigo é o direito penal do autor, combatido rigidamente pela doutrina, em especial após o período de nazismo que dominou a Alemanha (e também o fascismo, na Itália). Não é mais concebível um direito penal que persiga a personalidade ou grupos de pessoas. A lei penal deve incriminar fatos geradores de consequências penais, e não pessoas. (MARTINELLI, 2017, online).
Aproveitando-se da corrente do autoritarismo, o Direito Penal do Inimigo visa apenas saciar o clamor social por uma solução rápida e eficaz para a criminalidade, através de uma política criminal
punitivista, sob o pretexto de que com o endurecimento das leis e com maior punição, se evitaria os crimes mais infames, e puniria os já cometidos de forma exemplar: sem garantias, eliminando os indivíduos ante sua periculosidade (MARTINS; ESTRADA, 2009).
Quando se considera um duplo sistema de imputação, isto é, quando se diferenciam cidadãos e inimigos, além da desigualdade material representada pela negação do princípio de culpabilidade, porque o agente é punido por seu modo de vida e não por sua conduta, se produzem desigualdades processuais, pois enquanto se assegura aos cidadãos as garantias constitucionais, em especial a do devido processo legal, aos inimigos, além de negar esta – neste caso, por parte dos juízes – , também se autoriza a prática da tortura – neste caso, por parte dos agentes policiais
– , pois se entende que na guerra nenhum direito será respeitado. (CALLEGARI, 2010, p. 64 apud MARTINELLI; BEM, 2018, p. 78).
Dentre os doutrinadores e estudiosos do Direito a discorrerem negativamente sobre a teoria de Jakobs, merece destaque o jurista argentino Eugenio Raúl Zaffaroni, que se debruçou longamente sobre a evolução da figura do inimigo. Para Zaffaroni (2007), quando se distingue os seres humanos entre pessoas e não-pessoas, pressupõe-se a existência de indivíduos privados de direitos individuais, situação incompatível com o Estado de Direito.
A título de explicação de termo, entende-se por Estado de Direito um Estado em que todos os poderes públicos, assim como a população, fossem regulados por uma lei e uma constituição. Tal Estado deve preocupar-se constantemente com a promoção da cidadania plena, formada pelos direitos civis, políticos e sociais (RIBEIRO, 2019, online). Em síntese, “o Estado de Direito seria caracterizado pela transformação dos direitos naturais em leis do Estado, isto é, pela constitucionalização dos direitos naturais” (RIBEIRO, 2019, online).
Zaffaroni (2007) reconhece a boa-fé de Jakobs na formulação de sua teoria. Quando o alemão se propõe a usar o poder punitivo como contenção para as não pessoas, imagina que dessa forma seria possível impedir que todo o direito penal se impurificasse, afastando-o do inimigo, para que fosse exercido sem limitações. Contudo, o direito invocado por Jakobs anula a conceito de Estado de Direito, deixando o limite do poder nas mãos de um governante encarregado de individualizar o inimigo por decisão política e irresistível (ZAFFARONI, 2007).
Isso significa dizer que não existe para Jakobs um conceito fixo de inimigo, e que essa margem para interpretação elimina as garantias da população como um todo, e não só do potencialmente perigoso. Explica Zaffaroni (2007, p. 24-25):
Da exceção, sempre se invoca uma necessidade que não conhece lei nem limites. A estrita medida da necessidade é a estrita medida de algo que não tem limites, porque esses limites são estabelecidos por quem exerce o poder. Como ninguém pode prever exatamente o que algum de nós – nem sequer nós mesmos – fará no futuro, a incerteza do futuro mantém aberto o juízo de periculosidade até o momento em que quem decide quem é o inimigo deixa de considera-lo como tal. Com isso, o grau de periculosidade do inimigo – e, portanto, da necessidade de contenção – dependerá sempre do juízo subjetivo do individualizador, que não é outro senão o de quem exerce o poder.
Para Zaffaroni (2007), é tentador pensar que se concedermos espaço ao Direito Penal do Inimigo, de forma limitada, a essência radical desse pensamento será aplacada. Mas não é o que ocorre na prática, já que conforme se faz concessões ao Estado de polícia, essas são aproveitadas até que este se torne um Estado totalitário. Ao propor sua ideia de contenção do inimigo, Jakobs pretende abrir espaço no Estado de Direito, como fizeram outras correntes penalistas, sem considerar que o conceito de inimigo fora de um estado de guerra corresponde ao Estado absoluto, que, em essência, não tolera limite nem parcializações, ou seja, abandona totalmente o princípio do Estado de Direito (ZAFFARONI, 2007).
Nota-se que a teoria de Jakobs não é progressiva, mas sim regressiva, ao passo em que pretende aplicar tudo que o direito penal já abordou sem sucesso. Serve, em síntese, como forma de exclusão dos mais marginalizados, ou até mesmo como forma de extermínio, pois conforme alegado pelo próprio teórico alemão, o Direito Penal do Inimigo almeja eliminar perigos (MARTINS; ESTRADA, 2009).
Além disso, o conceito de inimigo para Jakobs é aberto. A aceitação da teoria de Jakobs implica em caminhos para o Estado autoritário, uma vez que, se o Estado tem liberdade para perseguir indiscriminadamente terroristas, abre-se um precedente para que persiga qualquer outro grupo que julgar “inimigo” da sociedade ou de uma classe dominante, como estrangeiros ou homossexuais (MARTINELLI, 2017).
Determinar em lei quem são os “inimigos” que merecem tratamento diferenciado no sistema penal é algo que beira o impossível. Tem-se a possibilidade de direcionar a investigação para espécies de delitos que incomodam os setores dominantes, tanto pode se perseguir o indivíduo realmente perigoso, quanto estender a repressão aos socialmente indesejáveis (MARTINELLI, 2017).
- CONCLUSÃO
Conclui-se, portanto, que a figura do inimigo não é uma inovação da jurisprudência ou da sociologia, mas sim um conceito que atravessou várias fases da história e assumiu vários rostos, desde as bruxas da idade média até o indígena a ser colonizado pelas nações europeias. O inimigo é uma ameaça à sociedade e à harmonia, portanto, perde o seu status de pessoa. Contundo, em muitos dos casos, a separação entre pessoas e “não-pessoas”, como propõe o doutrinador Günther Jakobs, serve à manutenção de classes dominantes e aos interesses de quem se encontra no poder.
Na perseguição ao inimigo, qualquer homem, não necessariamente o criminoso, pode ter sua vida classificada como menos valiosa pelo Estado. Basta que ele assim decida para que determinado grupo seja considerado descartável, seja ele formado por negros, imigrantes ou moradores de comunidades (COELHO; OLIVEIRA, 2017).
Ainda que a humanidade possua uma tendência histórica a repartir-se em grupos determinados, a distinção processual penal do inimigo é uma clara afronta ao consagrado Estado de Direito, que prevê a regulação de todos os indivíduos por uma constituição, de maneira igualitária. Trata-se um enlace com o autoritarismo, uma severa ameaça a isonomia e aos Direitos elementares conquistados ao longo dos anos.
- REFERÊNCIAS
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